FIOS ARABES, TECIDOS BRASILEIROS |
Desde o início do século XX, sírios, libaneses e palestinos exercem sua astúcia comercial nos quatro cantos do país |
John Tofik Karam |
Comerciantes espertos, o “mascate” árabe e o “turco da lojinha” são personagens que perambulam pelos contos de Cornélio Pires, pela poesia de Carlos Drummond de Andrade e pelos romances de Jorge Amado. A fama vai além da imaginação literária. Passando por campos, estradas e igarapés, os imigrantes árabes e seus descendentes também marcaram a ramificação do capitalismo tardio no país. No final do século XIX, a produção cafeeira em São Paulo serviu de contexto para a chegada de sírios, libaneses, palestinos. Ao contrário de outros imigrantes da época, estes não vinham trabalhar nas lavouras, e sim abastecer como mascates (vendedores itinerantes) os moradores das roças e fazendas – de peões a fazendeiros. A iniciativa garantiu aos árabes um virtual monopólio daquele comércio de porta em porta: em 1895, eles representavam 90% dos mascates oficialmente listados na cidade. Um dos mais famosos foi o libanês Benjamin Jafet. Em 1887, ele se tocou para o interior paulista mascateando linhas, agulhas, tecidos e outros artigos de armarinho. Com o lucro acumulado, juntou-se aos irmãos para estabelecer na capital uma das maiores indústrias têxteis do país. Assad Abdalla e Najib Salem foram outros pioneiros, abrindo na década de 1890 um “armazém de revenda” na atual Rua 25 de Março, bem no centro da cidade. Esses três negociantes faziam parte de uma rede de fornecimento de produtos para seus conterrâneos que mascateavam nas periferias. Até 1930, muitos desses mascates se transformariam também em “donos de lojinha”, dominando o atacado de tecidos e armarinhos em grande quantidade. Em pouco tempo eram centenas, e, concentrados na 25 de Março, respondiam por metade dos lucros do atacado no setor têxtil brasileiro. Não se restringiam ao comércio: quando a sorte lhes sorria, adquiriam suas próprias indústrias. Em 1945, estavam no comando de 27% das fábricas paulistas de fiação e tecelagem de algodão, seda, rayon, lã e linho. Completavam, assim, toda a cadeia de produção e distribuição: os industriais vendiam seus rolos de tecidos aos atacadistas majoritariamente árabes, que então os revendiam aos donos de confecções. O Rio de Janeiro também tinha a sua 25 de Março. Como em São Paulo, os primeiros sírios e libaneses que aportaram na capital carioca no final do século XIX instalaram-se em pontos próximos à rede ferroviária e ao porto. Em pouco tempo, a Rua da Alfândega servia de entreposto de fornecimento e revenda, onde os mascates iam acertar suas contas e buscar as miudezas que vendiam nas freguesias urbanas e rurais. Em meados do século XX, o comerciante libanês Jorge Tanus Bastani e seu pai costumavam encher seus baús de “meias, linha, algodão, quinquilharias, anéis, medalhões e pulseiras de fantasia, agulhas, pentes, sabão e uma infinidade de outros objetos”, antes de partir “em direção às fazendas”. Como ocorreu em São Paulo, mascates como o pai de Bastani viraram lojistas na Alfândega e nas redondezas, dominando o comércio atacadista de tecidos e artigos de armarinho. Em 1962, decidiram se juntar e fundar uma associação, a Sociedade dos Amigos e Adjacências da Rua da Alfândega, ou simplesmente Saara, sigla que acabou batizando toda a área. Segundo seu fundador, Demétrio Charl Habib, o objetivo inicial era defender a região de um plano de renovação urbana do recém-criado Estado da Guanabara: a reforma atravessaria o meio da rua. Quase uma década depois, os comerciantes árabes de São Paulo também criaram sua associação, a Univinco, União dos Lojistas da 25 de Março. Hoje em dia, esses lugares são sinônimo de comércio popular e ficaram marcados com monumentos em homenagem à figura do vendedor itinerante árabe. Na região da Saara é o “Mascate”; na área da 25 de Março, é a “Amizade Sírio-Libanesa”. Se no Sudeste esses imigrantes foram atraídos pela industrialização, na Grande Amazônia os negócios se entrelaçaram com a produção da borracha. Ao chegarem à região no final do século XIX, os vendedores itinerantes árabes ficaram conhecidos como “regatões”. Na primeira década do século XX, já haviam alcançado boa parte das margens fluviais do Rio Amazonas. À sombra das firmas estrangeiras exportadoras, muitos regatões prosperaram no incipiente mercado de consumo da região. Nos anos 1920, com a queda do preço da borracha, alguns dos chamados “turcos” compraram firmas de imigrantes já estabelecidas em Belém do Pará. Outros preferiram ficar no comércio na fronteira Brasil-Bolívia. A inauguração da Zona Franca de Manaus, em 1957, facilitou ainda mais a abertura de novos negócios. Meu bisavô, Abdo Bichara Ghosn, foi um dos que trocaram o Líbano por Porto Velho, no atual estado de Rondônia, logo após a virada do século XX. No Brasil, ficaria conhecido como Abidão Bichara. Junto com dois cunhados, desceu o Rio Madeira até os povoados de Abunã e Guajará-Mirim. A empresa familiar encomendava a mercadoria, principalmente secos (grãos), de Manaus e Belém perto do final da época das chuvas. Estocava o material em um armazém no centro de Porto Velho e aguardava o início do período da seca. Quando os estoques de outras lojas já estavam esgotados, aí, sim, Bichara e seus cunhados punham sua mercadoria à venda, por um preço elevado. Memórias semelhantes têm os descendentes de árabes que viviam no Oeste do Paraná e na região da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. Embora essa zona fosse atravessada por mascates desde o final do século XIX, sírios e libaneses só se instalaram de forma definitiva em 1951. Os primeiros haviam partido de Balloul e de Lala, duas cidades vizinhas do Vale do Bekaá, no Líbano. Percorrendo as ruas sem asfalto de Foz do Iguaçu e de Ciudad Presidente Stroessner (hoje Ciudad del Este), no Paraguai, ofereciam seus produtos de porta em porta. Como havia poucos armarinhos, confecções e manufaturados nacionais na região, decidiram abrir, no centro de Foz do Iguaçu, as primeiras lojas para atender clientes brasileiros e paraguaios. A partir dos anos 1970, com a chegada contínua de patrícios do Vale do Bekaá e do Sul do Líbano, os árabes dominaram o comércio nos bairros próximos à Ponte da Amizade, que une as cidades dos dois países. Como líderes do chamado “comércio de exportação”, revendiam para os importadores paraguaios produtos das indústrias de São Paulo ou de Santa Catarina. As leis federais de incentivos fiscais à exportação de manufaturados, criadas na década de 1960, só aumentaram seus lucros. E ainda diminuíram os preços dos produtos. Nos anos 1980, os árabes estavam à frente de muitas das 600 empresas exportadoras de Foz do Iguaçu, supostamente envolvendo 70% da população economicamente ativa do município. Enquanto os árabes que viviam em São Paulo, no Rio de Janeiro e na Grande Amazônia desenvolviam seus negócios à sombra do imperialismo econômico do Norte, no Paraná e na zona fronteiriça da América do Sul seus conterrâneos marcavam a ascensão do Brasil como poder regional sul-americano depois da Segunda Guerra Mundial. John Tofik Karam é professor na Universidade DePaul, em Chicago (EUA), e autor de Um outro arabesco: Etnicidade sírio-libanesa no Brasil neoliberal (Martins Editora, 2009). Saiba Mais - Bibliografia: LESSER, Jeffrey. Negociando a Identidade Nacional: Imigrantes, Minorias e a Luta pela Etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2001. RABOSSI, Fernando. “Árabes e muçulmanos em Foz do Iguaçu e Ciudad del Este: notas para uma reinterpretação”. In: Mundos em Movimento: Ensaios sobre migrações. SEYFERTH, Giralda; PÓVOA, Hélion; ZANINI, M.C.; SANTOS, M. (orgs.). Santa Maria: Editora da Universidade Federal de Santa Maria, 2007. TRUZZI, Oswaldo. Sírios e Libaneses: Narrativas de História e Cultura. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005. |
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terça-feira, 24 de novembro de 2009
FAZEMOS QUALQUER NEGÓCIO
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Muito legal!
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