terça-feira, 24 de novembro de 2009

DA ALFACE AO CAFEZINHO

ALICERCES, RECIFES E ACEPIPES

O árabe tem vasta presença na língua portuguesa. A influência que chegou ao Brasil é linguística, mas também literária, religiosa e cultural.
Paulo Daniel Farah

Altair, recém-casada, mora nos arrabaldes de uma aldeia do interior, põe o seu vestido de chita e o xale. Pega o garoto, um azougue de menino, lava-o e passa-lhe talco. Se o garoto tosse, dá-lhe uma colher de xarope, empapa o algodão em cânfora e faz massagem nas suas costas. Vai à cisterna, prende a azêmola na argola da manjorra, põe água na modesta jarra. Vai fazer café e adoça-o com saboroso açúcar-cande. O marido, um mameluco, conhecido pela alcunha Boca-Torta, bem cedinho, já se levanta com enxaqueca, põe as ceroulas, o terno cáqui, bem lavadinho com anil, toma um trago de conhaque de alcatrão São João da Barra ou, se não o tem, vai ao alambique, sorve um gole de jeropiga. Toma a tarrafa e vai pescar no açude. Outras vezes, prefere caçar javali; limpa o azinhavre da espingarda de grosso calibre, sai com o fraldigueiro chamado Sultão e volta com algumas arrobas de carne às costas. À hora do almoço, Altair lhe traz umas azeitonas. Senta-se com ele, e principiam uma salada de alface bem regada a azeite. Vem depois o espinafre, a cabidela, a carne ou o peixe escabeche, ou com alcaparra, que ingere com arroz bem soltinho. Ela lhe oferece um prato com acelga, que rejeita. Prefere alcachofra, por causa do fígado. Vai tomando refresco de tamarindo. À sobremesa, uma boa laranja seleta.

A presença das palavras de origem árabe na língua portuguesa é tão vasta que Antônio José Chediak pronunciou um discurso no Festival Árabe de 1972 no qual utilizou um número impressionante de vocábulos com essa origem.

Em sua permanência de quase oito séculos na Península Ibérica, os árabes contribuíram com centenas de vocábulos para o léxico da língua portuguesa, ainda durante seu período de formação. Segundo Antônio Houaiss (1915-1999), do total de cerca de três mil palavras do português primitivo, no mínimo 800 têm origem árabe. “A partir do século XII, quando começa a esboçar-se a consolidação da língua portuguesa como tal, o árabe estava presente, mas com esta dualidade: enquanto o árabe da Península Ibérica era o de uma língua de cultura, o português, ou aquilo que deveria ser o português da Península Ibérica, era uma língua natural. O árabe, como tal, teria todas as condições para prevalecer, e estava visivelmente prevalecendo na Península Ibérica, onde se radicara. Foi só com a Reconquista que houve a expulsão dos árabes e dos arabizados, graças ao que o português pôde conquistar terreno”, explica Houaiss.

As contribuições lexicais árabes se fazem perceber em áreas diversas, como as ciências exatas, a administração, a religião, a agricultura, a arquitetura, a culinária e a literatura. Em português, é expressivo o número de palavras que começam pela letra “a” e que têm origem árabe – entre muitas outras, alvará (documentada em português desde 1331), alfaiate, açúcar, arroz, azeite, alface, alfândega, almofada, almôndega, açude, aldeia, algema, algodão, alicerce e alquimia.

“Al” é o artigo definido em árabe – independentemente do gênero e do número. Com frequência, os portugueses o incorporavam às palavras que ouviam, sem compreender que se tratava do artigo. Ao compararmos a palavra “al-godão” com cotton, em inglês, coton, em francês, ou cotone, em italiano, isso fica claro. O mesmo se verifica quando comparamos a palavra “ar-roz” com rice, em inglês, riz, em francês, ou riso, em italiano. A única diferença é que, por uma questão fonética, ocorre uma assimilação – como acontece no caso das letras ditas solares. Assim, não se fala “al-ruzz” em árabe, mas “ar-ruzz” (daí “arroz”).

Na passagem do árabe para o português, é comum encontrar redirecionamentos semânticos – ou seja, palavras cujo sentido sofreu algum tipo de alteração. É o caso de “acepipe” (petisco), que originalmente (az-zebı¯b ou az-zabı¯b) designava “passa de uva”, bastante apreciada nas regiões árabes, como comprova o ditado “Darb al-habı¯b, akl az-zabı¯b” – “A bordoada de alguém querido é como degustar uva-passa”.

A mesma alteração de sentido ocorreu com “açougue”, que vem do árabe as-su¯q, ou “mercado”. Ainda hoje, é comum a referência ao mercado árabe como su¯q. Em português, virou local que vende carne. “Alarife” (mestre de obras, arquiteto, construtor) tem como origem o árabe al-arı¯f, “aquele que sabe e está bem informado”. “Álcool”, composto que, por extensão, passou a denominar qualquer bebida alcoólica, em árabe é al-kuhu¯l, forma vulgar de al-kuhul: “antimônio” ou “colírio feito em pó de antimônio”. “Alfândega”, do árabe al-funduqa (nome de unidade de al-funduq), é para os árabes uma estalagem, hospedaria ou hotel. “Alfarrábio” (livro antigo ou velho, de pouca ou nenhuma importância; ou livro há muito editado e que tem valor por ser antigo) vem de um sentido totalmente diferente: do árabe al-Fara¯bi, “nome de notável filósofo, músico e sociólogo originário de Farab”.

A palavra “arrecife” (ou recife) foi outra que ganhou novo sentido em português; seu ancestral árabe ar-rası¯f quer dizer “estrada pavimentada com rochedos”.  “Almanaque”, por sua vez, antes de ser a diversificada publicação que conhecemos, nasceu do termo árabe al-muna¯kh, “lugar onde o camelo ajoelha”, “clima”.

Não é novidade que houve inestimáveis contribuições árabes à matemática. O que nem todos sabem é que a origem de muitos termos da área é uma reverência explícita a esse legado. Um dos pioneiros dos estudos da álgebra foi o matemático e astrônomo do século VIII Al-Khwarizmi, originário de Khwarizm (atual Uzbequistão) e membro da Casa da Sabedoria, em Bagdá. Teve tanto reconhecimento que seu nome passou a designar a numeração decimal em arábico, sendo adotado pelo latim medieval (algorismus) por influência do grego arithmós e chegando ao português como “algarismo” e “algoritmo” (processo de cálculo ou tarefas para a solução de um problema).

É importante observar que em português existem muitas palavras de origem árabe que não se iniciam pela letra “a”: café, leilão, xarope, javali, zênite, xerife, xeque (ou xeique), oxalá, rabeca, rês, tâmara e tarifa, entre várias outras... Também nesses casos, o sentido de muitas palavras se modificou. “Cadimo”, que em português quer dizer costumeiro ou ardiloso, vem do árabe qadı¯m, “antigo”. “Xarope”, no Brasil um remédio, vem do árabe chara¯b, “qualquer líquido que se ingere”. “Faquir”, indivíduo que publicamente se submete a jejuns rigorosos e a duras provas de sofrimento físico sem dar sinais de sensibilidade, no árabe (faqı¯r) é usado para designar alguém pobre, miserável. Já “Javali” é o originário da montanha, montanhês (jabalı¯y).

A princípio os próprios árabes, e posteriormente a epopeia marítima portuguesa, carregaram esses vocábulos para diferentes regiões do globo, entre as quais o Brasil. Mais recentemente, a partir dos movimentos migratórios do século XIX, os árabes levaram para suas regiões alguns termos do português do Brasil que se incorporaram aos falares de parte de sírios, libaneses e palestinos.

A influência que a literatura árabe exerce em outras literaturas segue um percurso similar, direto ou indireto. É certo que a literatura portuguesa e também a brasileira sorveram da fonte literária árabe; além desse contato, por meio das obras que circulavam na Europa, em particular na Península Ibérica, fortaleceu esse vínculo a presença de escravos muçulmanos no Brasil (no tocante à literatura religiosa) e de migrantes árabes (em gêneros literários e estilos diferentes). Aqui cabe ressaltar o papel modernizante do encontro entre literatos árabes e brasileiros.
Muitas são as inspirações e as personagens árabes na literatura brasileira. Um dos autores que mais se valeram delas foi Jorge Amado. Na obra Gabriela, Cravo e Canela, o mascate Nacib cumpre função didática:

– Turco é a mãe!
– Mas, Nacib...
– Tudo o que quiser, menos turco. Brasileiro – batia com a mão enorme no peito cabeludo – filho de sírios, graças a Deus.
– Árabe, turco, sírio. É tudo a mesma coisa.
– A mesma coisa, um corno! Isso é ignorância sua. É não conhecer história e geografia...
– Ora, Nacib, não se zangue. Não foi pra lhe ofender. É que essas coisas das estranjas pra gente é tudo igual... H


Paulo Daniel Farah é professor da USP, diretor da Biblioteca e Centro de Pesquisa América do Sul-Países Árabes (BibliASPA) e autor de Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é espantoso e maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali (Argel, Caracas e Rio de Janeiro: BibliASPA, FBN, BNC e BNA, 2007).

Saiba Mais - Bibliografia:

HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente.  São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica.  São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

CHEDIAK, Antônio José.  Reprodução integral do discurso no Festival Árabe de 1972. IN. Revista FIKR de Estudos Árabes, Africanos e Sulamericanos, Seção Confluências, p. 145. São Paulo: BibliASPA, 2008.

Saiba Mais - Site:

BibliAspa:
www.bibliaspa.com.br

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